Há algum tempo, venho trabalhando todos os dias, batidão, domingo a
domingo, pegando alguns plantões noturnos para poder fechar a conta no final do
mês. Chega hoje, sabadão, acordo 8h da manhã, mexo no celular, espera a Pri
acordar, namoro, passeio com os dogs, faço o cafezin, mas não sinto a paz...
sinto culpa, sinto culpa por não estar estudando, revendo erros, melhorar o
conhecimento para por em prática no trabalho.
Por que?
Quando eu escolhi a profissão, eu sabia que é puxado, mas não deixa de
ser uma profissão. Não é uma vocação, não foi um sonho de criança, mas foi
escolhido pra provar, 1º para mim – que eu tenho inteligência suficiente para
ser aceito numa instituição pública num concurso extremamente concorrido. Em 2º,
para provar para os outros, pois eu já tinha falado que ia conseguir, só era
questão de tempo – e sempre que eu penso nisso, vem a voz do meu pai falando
que a gente é pobre e a única coisa que a gente tem é a nossa palavra.
Consegui, provei. E agora?
Comecei a ganhar bem, e quando eu quis fazer melhorias na casa dos meus
pais fui chamado de arrogante pelo meu próprio pai, hehe...eu só queria pintar
umas paredes, reformar o gesso do teto do banheiro que estava todo escuro, mas
pelo visto a forma que eu falei soou arrogante.
É engraçado como um pensamento vai puxando o outro e aí a gente entende a
importância da terapia. Sinto sua falta, Letícia, você me ajudou num tempo
difícil... eu ainda converso com você, só que sem pagar, imagino eu sentado na
sua frente e você escutando e tentando disfarçar os bocejos hehe. Com você foi
a primeira vez em 30 anos que eu tentei cuidar de mim, e não cuidar dos outros,
inclusive no começo senti culpa por passar com você, como se fosse errado eu
buscar ajuda – já vi em uns vídeos que quando na infância você tem
responsabilidades com os irmãos/tem que trabalhar cedo é normal sentir culpa
por querer se ajudar e não estar canalizando energia para ajudar alguém ao seu
redor.
Nessa sexta, uma paciente morreu. Uma doninha de quase 80 anos com câncer
de estômago recém diagnosticado, prognóstico reservado, não tinha mais 3 anos
de vida. Ela estava gaspiando, e eu demorei para reconhecer o gasping. E isso,
tem me feito enxergar como um impostor. Como alguém que escolheu a profissão
para não repetir o erro dos pais de não ter uma profissão para poder trabalhar
onde eu for, para mudar o status social. E, no meu irracional, eu não fetichizar,
romantizar o que eu faço, tornar-me um profissional pior. Eu entendo que o DAS
MAN fala que eu tenho que amar o que eu faço, colocando quase como uma
servidão, eu entendo que estou num sistema que escraviza e me coloca numa condição
de autodesenvolvimento e produção 24h/dia e quando paro para descansar, se descanso
demais já vem um julgamento externo, e o pior de todos, o julgamento interno.
Eu fico puto porque sinto culpa de hoje ter tirado um cochilo a tarde
depois do almoço, e não ter lido nada. Fico puto de querer ter mais força
mental para abarcar mais conhecimento e ao mesmo tempo estar exausto e sentir
culpa por estar exausto. Eu fico puto por não ser herdeiro, filho de político e
por viver na porra de um sistema que escraviza, e tem gente que consegue ser
convencida que essa merda funciona. Fico puto de reclamar, querer agir e estar
exausto. Fico puto de demorar a reconhecer um gasping e uma vida pôde ter ido
embora por minha inabilidade (+1 pessoa na minha corrente de cemitério).
Não sei se te coloquei como uma figura materna, mas sei que você me fez bem.
Sinto sua falta. Tenho receio e não tenho dinheiro para tentar começar com
outra pessoa. Fico puto.
