Velhas histórias

domingo, 25 de maio de 2025

A ROSA DE HIROSHIMA E NAGASAKI

 

O nascimento do mundo, Joan Miró , 1925



        Você está na praia, tranquilo, só de bermuda, com amigos que você nunca teve, mas por algum motivo você sente carinho por essas pessoas. Sol brilhando, tocando na sua pele como o carinho da pessoa amada, sem preocupações, clima bom, nem muito quente, nem frio, vento suave, cheiro bom. Alguém dos seus brinca ‘olha só! Vou explodir um ovo’, segurando o ovo na palma de uma mão ameaçando esmagá-lo com a outra. Uma bobeira de um dia simples. Você olha seu amigo, no fundo está o horizonte do mar, sem ondas, tudo azul marítimo e claro. Um som agudo seguido de um estrondo; uma faixa amarela e laranja acima da grande camada azul, silêncio e zumbido. Todos param atônitos admiram o show da dança das cores. Alguns já sabem o motivo, outros ainda não compreendem que a entrada para o nada é a luz.

            Nessa surrealidade não tão surreal assim, talvez cenas de um futuro próximo, já presenciado em séries e filmes, o impacto surge e rompe o cenário. Choro, gritaria, correria. Alguns pegam seus pertences, outros pegam seus entes que caíram, outros ainda abandonam tudo e todos, só correm.

      Quando olha novamente, você está numa casa com esses amigos de sentimento, todos desconhecidos de rosto e história, mas íntimos. A casa tem seu azul melancólico, escolho um blues como som de fundo. Você vê uns sentados sem olhar para o outro, alguns deitados de barriga para baixo, murmurando, mãos em face. Você é ator, você é espectador. Silêncio, ninguém precisar colocar em voz alta que a velha senhora vem visitar.

Por ironia, uma senhora velha passa em frente a porta de madeira dessa casa, aproveita que está entreaberta e pede para irmos ao restaurante ao final da rua. Diz que está com dificuldade de andar e quer ajuda. Sabemos que o tempo é limitado, estamos aguardando a onda do impacto chegar para nosso fim. Uns topam, outros preferem sofrer antes de o sofrimento chegar e sofrer enquanto presente. Você vai com mais alguns. A senhora sobe de cavalinho nas suas costas. Ela tem cheiro de roupa de gente velha. Isso não importa mais. No caminho, por poucos segundos você esquece sua situação porque você observa os vizinhos. Famílias reunidas, verdades vociferadas, tapas, murros, beijos e soluços. Verde. Quando você olha no horizonte percebe que logo mais chegará. Você só não sabe o quão rápido, não sabe se tem um culpado ou uma razão.

A fachada do restaurante é vermelha, com letras amarelas, talvez influência do mc donalds, restaurante beira de praia, muita madeira, cheiro de areia. A senhora agradece a carona. Muitos lá dentro cantam músicas alegres, cantam e sabem porque cantam. Garçons e garçonetes, cozinheiras e clientes, a música deixa o sentimento leve, dia simples, menos um dia simples.

 Com a onda do impacto cada vez mais próxima, você já consegue observar seu fel em algumas pessoas. Ela passa como uma ceifadeira cega. Primeiro a pessoal fica vermelha, cheia de bolinhas planas por todo o corpo, muito parecido com o sarampo. Após alguns poucos segundos, a consciência é perdida e você finalmente deixa de ser.

Você está na rua correndo, correndo para tentar escapar, tentar ainda ter mais um pouquinho de vida, quase todos que você ama, você viu ficando vermelho e partindo para o nada. Muita gente corre ao seu lado. Você percebe que os idosos, crianças e gordos cansam muito rápido, ficam vermelhos e caem. Durante sua fuga uma cena chama atenção: dentro da sorveteria tem uma mãe dando de mamar para seu bebê, enquanto degusta serve de creme. Dentro dos vidros da sorveteria é branco. A mãe mostra um rosto muito satisfeito com sabor do sorvete e de ver sua cria ganhar seu leite. Um ponto de paz contrastado com narquia da rua. Conforme a onda passa, mãe e bebê ficam vermelhos, a mãe perde a consciência e cai jazendo no chão com seu bebê sobre o colo, enrolado em panos brancos como nuvens.

Durante sua corrida na rua você nota algo bom. Percebe que não sente medo, desespero ou grandes sentimentos negativos, aliás muito pelo contrário, você sente o calor de estar vivo, o calor de ter podido sentir o que ser humano sente durante a vida, alegrias e tristezas, inveja e orgulho, medo e coragem, indiferença e amor. Talvez seja uma das poucas vezes que, mesmo por pouco tempo, você finalmente conseguiu sentir o sublime.

A onda chega mais perto, quanto mais você corre mais próxima ela fica. Você sabe que tem de seguir em frente, mas a rua agora curva. Talvez seja a hora. Antes de entrar na curva, você olha para o lado e vê que tem poucas pessoas que ainda correm, você sabe que há um rastro de corpos, e ganha  mais um instante de alegria porque quem está ao seu lado é o seu irmão. Você se sente mais satisfeito pelo sorriso no lábio dele, na fadiga honrada da corrida, e agora quando olha para frente, restam vocês dois para enfrentar a curva.