Velhas histórias

sexta-feira, 18 de julho de 2025

UM ALL STAR AMARELO

 


Outro dia, enquanto me empenhei em ficar longe de celular, decidi ir até a padaria a pé. Tomar um ar gelado de Barbacena, uma fagulha de Sol num céu azul e cinza para esquentar a pele e a alma. Talvez, na verdade, fui procurar coragem para animar e fazer as coisas que temos que fazer no dia a dia, de limpar a casa a estudar, passear com os cachorros a pagar as contas.

Foi em um dia qualquer, a rua estava vazia de gente. Lembro que foi bem cedo. Durante o caminho a cabeça foi se policiando para pensar no que tinha o que fazer durante o dia e competindo com não pensar o que tinha que fazer para poder curtir o momento da caminhada. Foi só uma ida até a padaria, mas quando você está no meio de uma rotina de muito tempo a mesma coisa, 15-20min já dão uma quebrada na monotonia e na mesmice.

No meio da rua, um pouco depois do radar de velocidade, tinha um All Star amarelo, cano médio, pé esquerdo, só, único, jazendo, cara de tênis novo. A parte branca nem estava suja, não tinha rabiscos nem desenhos de caneta no tecido, nem cadarço colorido. Procurei ao redor evidências do seu irmão ou de qualquer coisa que justificasse ele estar ali... nada.

Então, deixo aqui histórias que quero acreditar que aconteceram:

1

Uma pessoa teve uma noite muito divertida, sentiu-se leve, fazia tempo que não gargalhava, saiu com amigos, brincou, pulou, gritou. Fez o que quis, riu... sem máscara, xingou... sem máscara. Durante a madrugada na rua, sentiu que o tênis novo – e sempre gostou tanto de all star – estava incomodando, tava machucando. Ele não pode estragar esse momento que estava vivendo, não é compatível com a pessoa que o estava vestindo. Percebendo que o mundo é agora, desamarrou os dois cadarços, deixou o tênis preso na ponta do pé e, sem falar para ninguém, lançou o tênis com um chute tremendo para cima, um de cada vez. Um caiu no meio da rua, o outro no quintal de alguma casa, onde não dava para pular o muro caso quisesse recuperá-lo. Sensação de liberdade, mesmo com o chão gelado. Não tinha problema, o álcool esquenta. Desnó. A catarse representada em um all star amarelo.

 

2

Uma mãe, uma vó e 3 filhos num Ford K baratinha, todos apertados. Mãe dirigindo, avó no banco da frente. As 2 filhas pré-adolescentes de 11 e 14 anos e a criança de 6 anos no banco de trás. Depois de muito tempo e com a mancada do pai que desmarcou a viagem com suas crias pela 3ª vez, a mãe decidiu de última hora que seus filhos vão viajar sim. Juntou um pouquinho que tinha com o dinheiro que recebeu do imposto de renda, alugou um airbnb. No fundo, essa mãe ainda idealiza a família unida, com todos juntos e felizes, mas deixa essa ideia num coração bem pequeninho, escondido, que fica do lado do coração do sangue. Sabe que esse último filho foi quando se deixou cair no conto do canalha mais uma vez.

Todos queriam ir para praia, e daqui de Barbacena provavelmente estavam indo para Guarapari. Fico impressionado que, para os mineiros, quase 8 horas de viagem nem é tão longe assim. As filhas com olhos brilhando quando a mãe contou que iam para praia, logo depois de estarem vermelhos com a notícia que o pai cancelou o passeio das férias mais uma vez. Confusão rapidez com arrumação pega os remédios da vó vê se desligou o gás não esquece seus biquinis tenho que abastecer o carro onde deixei meu cartão vai dar tudo certo, se não der a gente vai fazer dar. A menina de 14 anos estava toda orgulhosa porque com seus últimos salários com os bicos de tia que cuida das crianças nos brinquedos infláveis e como garçonete em casamento, conseguir por cílios, comprar seu celular com uma capinha fofa e seu all star amarelo igual da Billie Eillish, sua cantora favorita.

Durante a saída do carro, nas primeiras ruas, sentiu tudo e todos socados no carro, pensou que tinha até pouco espaço pra respirar. Bolsa do bebê na parte de trás do banco, junto com travesseiros, bolsa térmica e seu all star. Estava com seu celular na mão. Estava no silencioso. Recebeu uma mensagem do pai, não quis falar para ninguém. Dizia que estava bravo que como tinha que pagar pensão não tinha dinheiro para viajar. Guardou para si. Com o remelexo do carro, seu irmão pulando, a avó pedindo para baixar o som, a irmã doida pra mexer no celular da mais velha, um dos all star caiu no seu colo. Olhou para ele, sentiu raiva. Pensou que talvez se tivesse dado o dinheiro para seu pai ao invés de comprar o tênis, ele estaria ali. Talvez pudessem ser uma família “normal”. Engoliu o choro para a alma, abriu o vidro e o jogou pela janela.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

BEATRIZ

"The Little Shepherdess" – William-Adolphe Bouguereau (1889)


Esses dias eu tava pensando nos diferentes tipos de amor que existem, ou na verdade, os diferentes tipos que eu conheço. Por favor, não pensar em ‘felizes para sempre’, príncipe e princesa, filmes Disney etc.. Desencante o mundo, afinal o amor real, da carne, pode ser sublime.

Um desses amores, aliás... já parou para pensar que quando alguém ama, como sabe que ama? O que sente? Ao que se refere quando fala que ama?

Quando você está com saudade, você AMuA, gera algum grau de tristeza, algum grau de ansiedade, diminui sua potência de agir. E quando ama... paz? Leveza? Aumenta sua potência de agir? Medo de perder o objeto do amor que você não sabe nem definir o que é?

Numa dessas rolagens de rede social, coisa de segundos, apareceu uma frase solta de um irmão que cuida de uma irmã. Sabe aquelas mensagens/fotos que você simplesmente rola, não para para pensar, buscando a tal da dopamina que o pessoal da internet tanto fala, uma passagem de dedo e sumiu. Por algum motivo, essa mensagem ficou igual a uma farpa no dedo, vira e mexe, incomodava. 

Fiquei pensando na minha irmã. Cara, como pode amar alguém desse tamanho? Durante o dia lembrei de várias cenas quando pegava ela no colo quando ela foi bebê, quando eu a tirava do berço e tentava acalma-la do choro. Principalmente quando estávamos só os dois em casa; só tinha eu para cuidar. Das vezes que pegamos ônibus juntos quando eu buscava ela na creche. Da admiração que eu tinha para cada marca do desenvolvimento que ela atingiu. Lembro quando eu perguntava, quando ela foi uma criança um pouquinho maior, “quanto custa uma casa? 14. E uma moto? 48. Uma menina que nunca foi chegada em boneca ou panelinha, mas sim em adrenalina. Pular, correr, subir, dançar.

Hoje ela é uma mulher jovem, 18 primaveras, faz faculdade; faz bicos para se virar com dinheiro, gosta de gente, gosta de viver. Não cumpriu com algumas projeções que eu tentei induzir. Tomou o próprio caminho. Acompanhei de longe. Fui estudar fora. Se tivesse que rotular um preço pago por sair de casa, foi o de acompanhar de longe sua metamorfose, sua formação de caráter. Uma das expectativas que criei foi de ela não ser inocente a ponto dos outros a fazerem de besta. Na proporcionalidade, afinal ela é jovem, deu certo, pois já vi ela fazendo os outros de besta, principalmente os mil namorados.

Não penso em arrependimentos, penso em cicatriz da escolha.


domingo, 25 de maio de 2025

A ROSA DE HIROSHIMA E NAGASAKI

 

O nascimento do mundo, Joan Miró , 1925



        Você está na praia, tranquilo, só de bermuda, com amigos que você nunca teve, mas por algum motivo você sente carinho por essas pessoas. Sol brilhando, tocando na sua pele como o carinho da pessoa amada, sem preocupações, clima bom, nem muito quente, nem frio, vento suave, cheiro bom. Alguém dos seus brinca ‘olha só! Vou explodir um ovo’, segurando o ovo na palma de uma mão ameaçando esmagá-lo com a outra. Uma bobeira de um dia simples. Você olha seu amigo, no fundo está o horizonte do mar, sem ondas, tudo azul marítimo e claro. Um som agudo seguido de um estrondo; uma faixa amarela e laranja acima da grande camada azul, silêncio e zumbido. Todos param atônitos admiram o show da dança das cores. Alguns já sabem o motivo, outros ainda não compreendem que a entrada para o nada é a luz.

            Nessa surrealidade não tão surreal assim, talvez cenas de um futuro próximo, já presenciado em séries e filmes, o impacto surge e rompe o cenário. Choro, gritaria, correria. Alguns pegam seus pertences, outros pegam seus entes que caíram, outros ainda abandonam tudo e todos, só correm.

      Quando olha novamente, você está numa casa com esses amigos de sentimento, todos desconhecidos de rosto e história, mas íntimos. A casa tem seu azul melancólico, escolho um blues como som de fundo. Você vê uns sentados sem olhar para o outro, alguns deitados de barriga para baixo, murmurando, mãos em face. Você é ator, você é espectador. Silêncio, ninguém precisar colocar em voz alta que a velha senhora vem visitar.

Por ironia, uma senhora velha passa em frente a porta de madeira dessa casa, aproveita que está entreaberta e pede para irmos ao restaurante ao final da rua. Diz que está com dificuldade de andar e quer ajuda. Sabemos que o tempo é limitado, estamos aguardando a onda do impacto chegar para nosso fim. Uns topam, outros preferem sofrer antes de o sofrimento chegar e sofrer enquanto presente. Você vai com mais alguns. A senhora sobe de cavalinho nas suas costas. Ela tem cheiro de roupa de gente velha. Isso não importa mais. No caminho, por poucos segundos você esquece sua situação porque você observa os vizinhos. Famílias reunidas, verdades vociferadas, tapas, murros, beijos e soluços. Verde. Quando você olha no horizonte percebe que logo mais chegará. Você só não sabe o quão rápido, não sabe se tem um culpado ou uma razão.

A fachada do restaurante é vermelha, com letras amarelas, talvez influência do mc donalds, restaurante beira de praia, muita madeira, cheiro de areia. A senhora agradece a carona. Muitos lá dentro cantam músicas alegres, cantam e sabem porque cantam. Garçons e garçonetes, cozinheiras e clientes, a música deixa o sentimento leve, dia simples, menos um dia simples.

 Com a onda do impacto cada vez mais próxima, você já consegue observar seu fel em algumas pessoas. Ela passa como uma ceifadeira cega. Primeiro a pessoal fica vermelha, cheia de bolinhas planas por todo o corpo, muito parecido com o sarampo. Após alguns poucos segundos, a consciência é perdida e você finalmente deixa de ser.

Você está na rua correndo, correndo para tentar escapar, tentar ainda ter mais um pouquinho de vida, quase todos que você ama, você viu ficando vermelho e partindo para o nada. Muita gente corre ao seu lado. Você percebe que os idosos, crianças e gordos cansam muito rápido, ficam vermelhos e caem. Durante sua fuga uma cena chama atenção: dentro da sorveteria tem uma mãe dando de mamar para seu bebê, enquanto degusta serve de creme. Dentro dos vidros da sorveteria é branco. A mãe mostra um rosto muito satisfeito com sabor do sorvete e de ver sua cria ganhar seu leite. Um ponto de paz contrastado com narquia da rua. Conforme a onda passa, mãe e bebê ficam vermelhos, a mãe perde a consciência e cai jazendo no chão com seu bebê sobre o colo, enrolado em panos brancos como nuvens.

Durante sua corrida na rua você nota algo bom. Percebe que não sente medo, desespero ou grandes sentimentos negativos, aliás muito pelo contrário, você sente o calor de estar vivo, o calor de ter podido sentir o que ser humano sente durante a vida, alegrias e tristezas, inveja e orgulho, medo e coragem, indiferença e amor. Talvez seja uma das poucas vezes que, mesmo por pouco tempo, você finalmente conseguiu sentir o sublime.

A onda chega mais perto, quanto mais você corre mais próxima ela fica. Você sabe que tem de seguir em frente, mas a rua agora curva. Talvez seja a hora. Antes de entrar na curva, você olha para o lado e vê que tem poucas pessoas que ainda correm, você sabe que há um rastro de corpos, e ganha  mais um instante de alegria porque quem está ao seu lado é o seu irmão. Você se sente mais satisfeito pelo sorriso no lábio dele, na fadiga honrada da corrida, e agora quando olha para frente, restam vocês dois para enfrentar a curva.