Velhas histórias

domingo, 26 de maio de 2024

EU MATEI UM MORTO

 

                                                   Morte e Vida , Gustav Klimt, 1916, Viena


Nessas últimas semanas, tenho rodado pela crítica – famosa sala vermelha - e apesar de ter desafios de técnica médica de aprendizagem, o que mais tem deixado à flor da pele têm sido os dilemas éticos e morais.

Quando você se depara diante de uma situação de alguém com idade avançada e saúde frágil é até relativamente mais fácil de se pensar em final de vida, de se pensar em como conduzir o caso e de como conversar com a família. Porém, quando chegam os meio termos, não tão velho, mas nem tão novo, alguém sem doença terminal ou estágio avançado de algum insulto agudo, e, você e confrontado a conversar com a família sobre cuidados paliativos, aí sim a razão abala.

Nessa semana, vi uma senhora que até um mês estava andando e falante, e de repente, na nossa maca, estava com fácies de morte – boca aberta, olhos semicerrados, sem se mexer, semiconsciente. Tem 7 filhas e 3 filhos. As filhas dão mais trabalho que a própria paciente.

Nesse mesmo tempo, um homem de cerca de 45 anos, após acidente de moto x caminhão, evoluiu para morte encefálica. Foi uma guerra conseguir passar por todos os protocolos, e no dia que tudo ocorreu burocraticamente correto, aos 45 do segundo tempo, a família negou qualquer possibilidade de doação de órgãos. Estava no segundo dia com o paciente. Não tinha realizado sua admissão, não tinha realizado nenhum teste de morte encefálica, não tinha meu carimbo vinculado ao homem. Todavia, como ficou comigo sua evolução do dia do último exame (uma arteriografia realizada externamente) e da negação da família para a doação de órgãos, eu tive que ser a pessoa a dar a ordem de desligar os aparelhos, as bombas e o ventilador. Eu matei a vida artificial de um morto.

Durante o almoço, antes de dar essa ordem, tive um episódio de ansiedade- famosa vontade de chorar, aperto no peito e respiração rápida; foi breve; mas foi. Esse dia me atolaram de burocracia, relatório para o IML, além de pendência de outros pacientes, da demanda da família da doninha meio termo e da demanda da doninha em fase terminal – parece que eles combinarem de vir para crítica juntos- então, no único momento que eu pude pensar, que foi esse no meu almoço, eu me senti gente, senti angústia, senti até certo grau de injustiça, pois o problema do homem foi dado para ser resolvido, contudo ele foi conduzido todo esse tempo por outras pessoas que estavam lá. Na hora de desligar as coisas foi muito mais sem emoção que imaginei. Foi uma simples ordem: “vamos desligar os aparelhos e ajeitar o corpo do fulano que vai para o IML”. Fim. Para as enfermeiras então, tiravam os acessos e continuavam conversando da vida comum de casa. Para mim, uma novidade, para elas, mais um acesso que o médico mandou tirar.

sábado, 11 de maio de 2024

LETÍCIA

   

The Laughing Fool, 1500, Jacob Cornelisz van Oostsanen


     

Hoje durante uma corrida eu pensei em começar esse texto de diversas formas. A que eu mais gostei foi: já que eu não posso pagar psicóloga vou escrever aqui pra ver se ajusta alguma coisa na cachola.

            Ontem tive um conflito comigo mesmo: até quanto tenho que aguentar uma sensação de preso pra manter algo bom? 

            Desde a época que eu me entendi por gente, eu me sinto preso e em dívida.

 

    Primeiro, por ser irmão mais velho já era dito - você é o mais velho, você tem que olhar seus irmãos! 

Como eu ganhava casa, comida e roupa, na minha cabeça essa era minha parte de contribuir para o "algo bom", de fazer o certo para as coisas de casa irem bem. Eu estudava, tentava de tudo para não errar na frente do meu irmão - e acredite ou não, isso foi uma das coisas que mais pesou pra mim. Não sou muito bom de lembrar uma história de infância - só as mais marcantes - porém as sensações desse período estão no âmago. O fato de eu sair com meu irmão de chaveiro me limitou muito a errar! Eu tava explodindo pra descobrir o mundo, mas eu tinha que "ser o exemplo".

    

             Logo quando eu fui ficando mais rapaz, 15,16 anos, eu mudei de colégio. Não tinha mais familiar na minha cola. O portão era livre, não era o bairro onde eu morava. Ali eu entendi que eu poderia tentar ver quem eu sou, limites, deveres, cagadas. Foi ali que eu conheci o álcool, sexo, maconha.

Fui expulso do museu do Ipiranga porque tava com mais 3 amigos bebendo Natasha com Sprite, lá nas árvores, 10h da manhã. Foi nessa época que eu comprei minha primeira playboy - da Cacau do BBB (muito boa revista, aliás). Foi nessa época que tive vários rolinhos, que eu consegui ir a um cinema com pessoas que gostam da sua companhia mesmo você falando merda.

Todavia foi nessa época que tinha que trabalhar na loja dos meus pais. Um caixa/ajudante geral/faxineiro... o engraçado que eu escutava que essa loja tava sendo preparada para mim. Não ganhava salário. E nem fui consultado se eu queria continuar tocando a loja, e como eu me sentia em dívida, não conseguia falar que não, não conseguia falar nada!

             Hoje eu dou risada que de quem acha que trabalhar com o pai é boiada. Meu amigo, ele fala que você é dono, você não recebe, você entra na hora que abre e sai na hora que fecha, isso se não tiver mais coisa para fazer, e ah... almoçou, volta pra trabalhar.

             Não entenda essa trajetória como se fosse um suplício, com certeza teve momentos bons, histórias legais, mas quando eu paro para lembrar, a sensação de preso e dívida sempre vêm primeiro.

            Penso que um dos meus recursos pra eu poder tentar respirar um ar com meu pulmão foi a mentira. A deliciosa mentira. Sempre do lado do meu ego, da minha certeza, foi ela que me ajudou a proporcionar momentos de vida. Sabe aquele momento de adrenalina que vc escapou por um triz de algo ruim e gera aquela sensação de " uuouu! como é legal estar vivo!". Pra muitas dessas minhas experiências eu tive que usá-la, caso contrário eu estaria trabalhando ou cuidando de alguém.

Um dia vou escrever sobre como a mentira e vício nessa sensação afetou/afeta meus relacionamentos, minha interação com os outros. A única certeza que eu tenho é que um dia vou morrer e todos os dias a sensação de preso toma café comigo às 7h, 14h e meia-noite.