Conversão de Madalena 1622-1625, Artemísia Gentileschi
Tem
algumas coisas da vida que são bem curiosas, a gente não sabe de onde veio,
quem falou, quem fez, mas a gente reproduz e passa adiante mesmo assim. Há 3
dessas que eu destaco: se você cruzar seus dois indicadores na hora que um
cachorro tiver fazendo cocô, ele vai parar, se uma grávida ver você comendo
algo e ela ficar com vontade e não comer, te dá terçol, e a última, depois que
a pessoa morre ela vira boa.
A
primeira é meio Harry Potter, a segunda eu gosto de acreditar e inclusive sou
propagador, já a terceira me incomoda, e é nessa condição que eu quero
escrever.
Recentemente,
meu avô faleceu. Começou um desconforto abdominal, foi ao médico, descobriu que
tinha água na barriga, fez tomografia e constatou câncer de fígado já espalhado
para o pâncreas e para os ossos. Não aguentou 2 meses e já foi embora, tudo
muito rápido. Quando eu recebi a notícia estava passando a notícia na UTI do
Regional sobre um outro vô de uma família que o gostava muito. Tiozinho de mais
de 85 anos, fumou a vida toda, intubado em contexto de choque séptico de foco
pulmonar. A família – com vários filhos e filhas e netas que iam lá visita-lo nos
seus últimos dias – transparecia um carinho muito grande pelo tiozinho, todos
relataram que ele era teimoso, descendente de italiano bravo, cabrunco, porém
todos com muito orgulho da educação e das oportunidades de vida que ele pode
proporcionar.
Meu
avô morreu coisa de 2 dias antes desse tiozinho italiano bravo, e confesso a
vocês que senti mais pesar pelo tiozinho do que pelo meu avô. Fico pensando, como
posso ter sentimentos mesmo que discretos por alguém que nunca consegui trocar
uma palavra na vida do que pelo meu vô.
Nossa
que insensível! Você não ficou mal nem pelo seu pai ou seus tios? - Vocês podem dizer. De verdade, não, na hora
que falei no telefone fingi que sim. Vou trazer aqui algumas memórias para
tentar justificar tal sentimento:
1- Nunca
perguntou se estamos bem.
2- Morava
perto de casa, e quando tinha saúde boa, se nós não o visitarmos ficava meses
sem qualquer contato.
3- Fiquei
puto que falou para fazer um natal na casa dele e não teve arroz! Enquanto o
resto dos convidados levaram tudo.
4- Se
minha avó (a segunda mulher dele, que eu também chamava de vó) quando era viva
não forçasse, ele não veria ninguém
5- Ele
tinha foto dos netos e filhos de outras famílias pela casa, mas não dos netos
do próprio sangue.
6- Depois
que eu entendi que eu era gente, entendi que ele funcionava assim, porém depois
de anos, quando nasceu minha irmã mais nova, ele não se dava ao trabalho de
mandar parabéns, não ligava, e a gente tinha que explicar para ela que o vô era
assim mesmo, pra ela não se importar muito. Comigo e meu irmão que tem pouca
diferença de idade, eu já estava acostumado, mas depois de anos ele repetir esse
padrão com ela fez meu fel pulsar novamente.
Mas
o bicho é de todo ruim? Não, as únicas lembranças boas que tenho são dividas em
1 piada e as vezes que minha avó o obrigou a ser legal.
Piada:
quando eu levava uma menina para conhecer a família, se ele estivesse presente
ele perguntava para a menina se ela usava óculos, se sim, tá na hora de trocar
pq o neto dele é muito feio e, se não, tá na hora de começar a usar pq o neto
dele é muito feio. Sempre com tom de brincadeira, não era um momento ruim.
Inclusive as que o conheceram alertei todas sobre a piada.
Há
alguns anos quando essa minha avó morreu, em menos de 6 meses ele começou a ir
nos bailes de velho arrumar umas velhas para ele ficar. Eu sei que não existe
tempo certo para recomeçar a querer um par romântico, mas o luto que ele
mostrou no começo não era compatível com viúvo recente que com as palavras dele
“estava a todo vapor”. Não conto aqui as
coisas que ele já fez com meu pai, meus tios e minha avó de sangue. Não conto
aqui o que acontecia com ela quando ela não passava o pijama dele para dormir,
o que ela tinha que fazer quando ele batia o garfo no prato, sobre a história
da cunhada e de até talvez algum herdeiro perdido por aí (fica na boataria).
Contudo
conto que um dia, quando ele foi visitar um tio meu que tinha virado nosso
vizinho, e ele meio que na obrigação dava uma passada em casa, ele questionou
meu pai se meu pai não queria que ele fosse feliz. Meu pai, meio sem graça, e
meio que de resposta automática falou que “lógico que sim”. Lembro que fiquei olhando essa cena e pensei como
que uma pessoa esquece de tudo que ela fez os outros sentir e ainda almeja que os
sofredores o queiram bem. Para mim, a resposta da pergunta, ainda mais olhando
para minha irmã que estava ali perto, estava na ponta da língua. A sorte é que
não foi dirigida a mim, mas depois que ele foi embora eu comentei com a
família. “Você não quer que eu seja feliz?” R. Não, eu quero que você se foda.
Não acho justo o discurso de depois que ficou velho ficou bonzinho, sendo que
nenhuma ação se mostrou para isso.
Mas
não foi... E posso dizer com firmeza que essa afirmação é verdadeira, visto o
que foi feito com novas namoradas que ele arrumou.
Esse
texto seja talvez a única forma de eu manifestar meu luto, meio torto é
verdade, mas está aqui.
Hoje
eu moro muito longe. Não fui ao enterro, ainda não tive coragem de ligar para meu
tio Gabriel, cara que adoro tanto, ele é o único filho do meu avô com minha “segunda
avó”, os outros 3 irmãos dele (contando meu pai) são da minha avó de sangue.
Um
pouco que aprendi da vida é: vínculo de sangue não te obriga a gostar e nem a
tolerar alguém que não o merece.

