Velhas histórias

domingo, 23 de março de 2025

E ESSAS COISINHAS DA VIDA

 

                                 

                         Conversão de Madalena 1622-1625, Artemísia Gentileschi


Tem algumas coisas da vida que são bem curiosas, a gente não sabe de onde veio, quem falou, quem fez, mas a gente reproduz e passa adiante mesmo assim. Há 3 dessas que eu destaco: se você cruzar seus dois indicadores na hora que um cachorro tiver fazendo cocô, ele vai parar, se uma grávida ver você comendo algo e ela ficar com vontade e não comer, te dá terçol, e a última, depois que a pessoa morre ela vira boa.

A primeira é meio Harry Potter, a segunda eu gosto de acreditar e inclusive sou propagador, já a terceira me incomoda, e é nessa condição que eu quero escrever.

Recentemente, meu avô faleceu. Começou um desconforto abdominal, foi ao médico, descobriu que tinha água na barriga, fez tomografia e constatou câncer de fígado já espalhado para o pâncreas e para os ossos. Não aguentou 2 meses e já foi embora, tudo muito rápido. Quando eu recebi a notícia estava passando a notícia na UTI do Regional sobre um outro vô de uma família que o gostava muito. Tiozinho de mais de 85 anos, fumou a vida toda, intubado em contexto de choque séptico de foco pulmonar. A família – com vários filhos e filhas e netas que iam lá visita-lo nos seus últimos dias – transparecia um carinho muito grande pelo tiozinho, todos relataram que ele era teimoso, descendente de italiano bravo, cabrunco, porém todos com muito orgulho da educação e das oportunidades de vida que ele pode proporcionar.

Meu avô morreu coisa de 2 dias antes desse tiozinho italiano bravo, e confesso a vocês que senti mais pesar pelo tiozinho do que pelo meu avô. Fico pensando, como posso ter sentimentos mesmo que discretos por alguém que nunca consegui trocar uma palavra na vida do que pelo meu vô.

Nossa que insensível! Você não ficou mal nem pelo seu pai ou seus tios?  - Vocês podem dizer. De verdade, não, na hora que falei no telefone fingi que sim. Vou trazer aqui algumas memórias para tentar justificar tal sentimento:

1-    Nunca perguntou se estamos bem.

2-    Morava perto de casa, e quando tinha saúde boa, se nós não o visitarmos ficava meses sem qualquer contato.

3-    Fiquei puto que falou para fazer um natal na casa dele e não teve arroz! Enquanto o resto dos convidados levaram tudo.

4-    Se minha avó (a segunda mulher dele, que eu também chamava de vó) quando era viva não forçasse, ele não veria ninguém

5-    Ele tinha foto dos netos e filhos de outras famílias pela casa, mas não dos netos do próprio sangue.

6-    Depois que eu entendi que eu era gente, entendi que ele funcionava assim, porém depois de anos, quando nasceu minha irmã mais nova, ele não se dava ao trabalho de mandar parabéns, não ligava, e a gente tinha que explicar para ela que o vô era assim mesmo, pra ela não se importar muito. Comigo e meu irmão que tem pouca diferença de idade, eu já estava acostumado, mas depois de anos ele repetir esse padrão com ela fez meu fel pulsar novamente.

Mas o bicho é de todo ruim? Não, as únicas lembranças boas que tenho são dividas em 1 piada e as vezes que minha avó o obrigou a ser legal.

Piada: quando eu levava uma menina para conhecer a família, se ele estivesse presente ele perguntava para a menina se ela usava óculos, se sim, tá na hora de trocar pq o neto dele é muito feio e, se não, tá na hora de começar a usar pq o neto dele é muito feio. Sempre com tom de brincadeira, não era um momento ruim. Inclusive as que o conheceram alertei todas sobre a piada.

Há alguns anos quando essa minha avó morreu, em menos de 6 meses ele começou a ir nos bailes de velho arrumar umas velhas para ele ficar. Eu sei que não existe tempo certo para recomeçar a querer um par romântico, mas o luto que ele mostrou no começo não era compatível com viúvo recente que com as palavras dele “estava a todo vapor”.  Não conto aqui as coisas que ele já fez com meu pai, meus tios e minha avó de sangue. Não conto aqui o que acontecia com ela quando ela não passava o pijama dele para dormir, o que ela tinha que fazer quando ele batia o garfo no prato, sobre a história da cunhada e de até talvez algum herdeiro perdido por aí (fica na boataria).

Contudo conto que um dia, quando ele foi visitar um tio meu que tinha virado nosso vizinho, e ele meio que na obrigação dava uma passada em casa, ele questionou meu pai se meu pai não queria que ele fosse feliz. Meu pai, meio sem graça, e meio que de resposta automática falou que “lógico que sim”.  Lembro que fiquei olhando essa cena e pensei como que uma pessoa esquece de tudo que ela fez os outros sentir e ainda almeja que os sofredores o queiram bem. Para mim, a resposta da pergunta, ainda mais olhando para minha irmã que estava ali perto, estava na ponta da língua. A sorte é que não foi dirigida a mim, mas depois que ele foi embora eu comentei com a família. “Você não quer que eu seja feliz?” R. Não, eu quero que você se foda. Não acho justo o discurso de depois que ficou velho ficou bonzinho, sendo que nenhuma ação se mostrou para isso.

Mas não foi... E posso dizer com firmeza que essa afirmação é verdadeira, visto o que foi feito com novas namoradas que ele arrumou.

Esse texto seja talvez a única forma de eu manifestar meu luto, meio torto é verdade, mas está aqui.

Hoje eu moro muito longe. Não fui ao enterro, ainda não tive coragem de ligar para meu tio Gabriel, cara que adoro tanto, ele é o único filho do meu avô com minha “segunda avó”, os outros 3 irmãos dele (contando meu pai) são da minha avó de sangue.

Um pouco que aprendi da vida é: vínculo de sangue não te obriga a gostar e nem a tolerar alguém que não o merece.




sábado, 1 de março de 2025

VOCÊ AINDA LEMBRA?

 


O Terapeuta de René Magritte (1898 - 1967)


 

Acho muito bacana quando passarinho é usado como metáfora para transformação, para liberdade, para possibilidade. Presente no sutil e estrondoso poema do Mario Quintana [...] Eles passarão.../ Eu passarinho! Até nas músicas populares, quando Joel Marques escreve: filho vira passarinho e quer voar – música essa, estourada na boca do Zezé de Camargo e Luciano e amplificada no filme 2 filhos de Francisco.

Pego esse termo emprestado para o texto de hoje, porque quero escrever sobre uma sensação... uma sensação esquecida, ou até mesmo nem sabia que ela existia. E, como um cara que fala muito, vou explicá-la.

Quando penso passarinho vem uma imagem antagônica na cabeça: tanto ele no ar, desbravando o céu, quanto ele preso em uma gaiola apertada, sufocante. Como a maioria das coisas da vida, nós nos acostumamos, independente do grau de satisfação ou insatisfação que ela proporcione. É só dar tempo ao tempo – veja que o mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede. Uma relação de abuso, um emprego ruim, o estado de saúde de um parente, a inércia de ficar na mesma pode fazer com que o passarinho preso na gaiola a ache até aconchegante, afinal tem comida, tem água, tem alguém por alguns minutos do dia com quem conversar. Agora, imagine a sensação de um passarinho recém preso, ser libertado. Imagine os primeiros segundos e minutos depois que a portinhola da gaiola é aberta, seu instinto que estava furioso, deprimido por terem roubado seu mundo vira fome de ar, vira fome de altura, uma ganância de viver.

Isso aconteceu após um toque de mãos, meio sem querer é verdade, quase que automático para atravessar uma rua, mas o suficiente para ser um clique de uma abertura da portinhola. Breve, potencialmente perigoso, deu fome, deu poesia.

Do mesmo jeito que nasceu, morrerá. O que valeu a pena foi o sair do automatismo e da rotina de sensações que nos programamos a sentir. Muito provável voltará para a gaiola... hoje só quero deixar registrado essa fagulha de humanidade, essa fagulha de instinto, e quando eu voltar a visitar esse texto, quero estar vivo.


A.A.