Velhas histórias

sábado, 1 de março de 2025

VOCÊ AINDA LEMBRA?

 


O Terapeuta de René Magritte (1898 - 1967)


 

Acho muito bacana quando passarinho é usado como metáfora para transformação, para liberdade, para possibilidade. Presente no sutil e estrondoso poema do Mario Quintana [...] Eles passarão.../ Eu passarinho! Até nas músicas populares, quando Joel Marques escreve: filho vira passarinho e quer voar – música essa, estourada na boca do Zezé de Camargo e Luciano e amplificada no filme 2 filhos de Francisco.

Pego esse termo emprestado para o texto de hoje, porque quero escrever sobre uma sensação... uma sensação esquecida, ou até mesmo nem sabia que ela existia. E, como um cara que fala muito, vou explicá-la.

Quando penso passarinho vem uma imagem antagônica na cabeça: tanto ele no ar, desbravando o céu, quanto ele preso em uma gaiola apertada, sufocante. Como a maioria das coisas da vida, nós nos acostumamos, independente do grau de satisfação ou insatisfação que ela proporcione. É só dar tempo ao tempo – veja que o mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede. Uma relação de abuso, um emprego ruim, o estado de saúde de um parente, a inércia de ficar na mesma pode fazer com que o passarinho preso na gaiola a ache até aconchegante, afinal tem comida, tem água, tem alguém por alguns minutos do dia com quem conversar. Agora, imagine a sensação de um passarinho recém preso, ser libertado. Imagine os primeiros segundos e minutos depois que a portinhola da gaiola é aberta, seu instinto que estava furioso, deprimido por terem roubado seu mundo vira fome de ar, vira fome de altura, uma ganância de viver.

Isso aconteceu após um toque de mãos, meio sem querer é verdade, quase que automático para atravessar uma rua, mas o suficiente para ser um clique de uma abertura da portinhola. Breve, potencialmente perigoso, deu fome, deu poesia.

Do mesmo jeito que nasceu, morrerá. O que valeu a pena foi o sair do automatismo e da rotina de sensações que nos programamos a sentir. Muito provável voltará para a gaiola... hoje só quero deixar registrado essa fagulha de humanidade, essa fagulha de instinto, e quando eu voltar a visitar esse texto, quero estar vivo.


A.A.

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