Velhas histórias

domingo, 14 de julho de 2024

DESPRAZER, EU SOU O MUNDO

                       

                                                                     O Anjo Caído (L' Ange déchu), 1847, por Alexandre Cabanel


Na correria do dia a dia, a gente tem pequenos espaços das nossas horas na qual a gente consegue pensar. Geralmente ocorre quando não estamos dando atenção para alguém ou prum celular, uma TV. Grande parte da nossa atenção é dada para o trabalho, os tempinhos de folga ficam voltados pra telas. Penso que muita gente tem insônia por causa disso, o tempo que tem pra pensar só é conseguido a noite na hora que deita. Aí, ao invés de dormir, pensa.

Faça o experimento de tirar 15 min no meio do seu dia pra pensar. Veja se quase sempre não são os mesmos pensamentos que te acompanham no travesseiro, você querendo dormir e sua cabeça não deixa.

Ultimamente, num desses lapsos de tempo pra pensar, tem me recorrido um episódio que ocorreu comigo no colégio. Um olhar.

Explico:

A época foi do ensino médio, tava fazendo o segundo ano, era de uma turma em que a gente queria jogar bola, ficar com meninas e ir pra porto seguro no terceirão. Quase ninguém falava de vestibular, quase ninguém falava de política, éramos alunos médios com cabeça média.

No grande interclasses, campeonatinho de futebol organizado por nós mesmos, jogávamos as partidas na quadra dos bombeiros, próximo ao colégio. Num desses jogos, um cara do primeiro ano saiu correndo do banco de reservas para agredir o Alberto (meu amigo), porque o Alberto tinha feito uma falta no jogador do time dele. Eu que tava na reserva do meu time, sai correndo pra defender o Alberto, e sentei um murro na cara do cara antes de ele encostar no meu amigo. O cara caiu, quebrou o nariz e o tempo fechou. Os bombeiros ficaram putos, os outros jogos do dia foram adiados.

Como em qualquer colégio, essa história repercutiu, ganhou proporções, parecia que o cara que eu dei o socão conhecia uns cara e aí o tempo ia fechar de novo e tals... Lembro que essa história repercutiu em várias esferas da minha vida na época, e como eu era adolescente, a intensidade das emoções eram o 100x maior... Querida adolescência, quando tudo é muito muito!

Pra tentar sair dessa, pensando em colégio e amigos, chegou na minha orelha que o cara do primeiro ano queria me dar um soco no rosto, e assim a gente evitava uma briga de um monte de gente contra um monte de gente. Deixei. Isso correu alguns dias depois da primeira briga. Meus grandes amigos não estavam comigo no ato. Não os culpo, escolhi um horário que tava a maioria em aula. Na minha cabeça da época fazia sentido deixar levar um soco no rosto de que arranjar uma treta com um monte de gente, inclusive envolvendo o resto dos meus amigos. Não queria. Só queria que a história acabasse. Já tinha dado problema na minha casa com meus pais – aí nessa esfera fica em outro texto pra Letícia – os ânimos já estavam abalados.

Tinha uns colegas meus que estavam de aula vaga comigo, foram juntos ver eu levar o soco. Ficamos bem próximo da porta do colégio. A guardinha da porta tava nem aí, afinal a gente tava fora do colégio. Mesmo eu tentando dialogar com o japonês gordinho que eu tinha dado o soco, ele manteve o ato. (Não pense em japonês gordinho fofinho nerdola, pense em japonês gordinho yakuza). Eu cheguei a perguntar se ele ia mesmo querer fazer isso, e ele respondeu que logico que sim porque eu tinha quebrado o nariz dele. Depois dessa resposta eu fiquei marcado pelo olhar. Foi um olhar que seu eu fechar os meus olhos eu ainda consigo ver. Um olhar de ódio, de maldade. Eu entendo estar de cabeça quente e sair na mão. Eu não entendo dias depois, após a poeira ter baixado, aquele olhar. De a pessoa em plena consciência saber que vai agredir alguém e tá tudo bem. Ali eu entendi que a maldade pode fazer parte de alguém, ali eu entendi que o mundo é mau, ali minha inocência morreu.

TUFF, levei o primeiro, no reflexo esquivei um pouco e pegou na bochecha. O japonês não ficou satisfeito, alegou varias vezes que eu tinha quebrado o nariz dele. Deixei dar um segundo soco. TUFF de novo. Pegou um pouquinho acima do meu nariz, simulei uma dor, perguntei se estamos quites, ele falou que sim. Não sei como esse cara errou meu nariz, afinal sou mó narigudão.

Desde esse dia, minha estrutura social mudou. A relação com meus amigos, a relação com meus pais por terem me deixado na mão, o que eu pensava de mim mesmo.

Hoje eu escrevo aqui, um fato que aconteceu em 2011, e eu ainda vejo o olhar. Talvez eu escrevo aqui porque alguma coisa ainda não tá fechada, alguma coisa não tá resolvida. Pode ser que novas situações de medo, insegurança ativem essa memória.

A única coisa que eu fico puto é que nos meus segundos de paz, no momento que era pra eu relaxar, tô lá eu revivendo a memória, reproduzindo falas, sentindo o coração bater mais forte, sentindo a morte do Rodrigo que gostava do mundo e das pessoas, do mundo ideal. E o olhar tá ali, na minha frente, fazendo companhia, esperando eu agir de outra forma, esperando eu tomar uma ação pra não se ferir. Desculpa, eu não levantei meus braços, eu deixei me bater. De novo.


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