Outro
dia, enquanto me empenhei em ficar longe de celular, decidi ir até a padaria a
pé. Tomar um ar gelado de Barbacena, uma fagulha de Sol num céu azul e cinza
para esquentar a pele e a alma. Talvez, na verdade, fui procurar coragem para
animar e fazer as coisas que temos que fazer no dia a dia, de limpar a casa a
estudar, passear com os cachorros a pagar as contas.
Foi
em um dia qualquer, a rua estava vazia de gente. Lembro que foi bem cedo.
Durante o caminho a cabeça foi se policiando para pensar no que tinha o que
fazer durante o dia e competindo com não pensar o que tinha que fazer para
poder curtir o momento da caminhada. Foi só uma ida até a padaria, mas quando você
está no meio de uma rotina de muito tempo a mesma coisa, 15-20min já dão uma
quebrada na monotonia e na mesmice.
No
meio da rua, um pouco depois do radar de velocidade, tinha um All Star amarelo,
cano médio, pé esquerdo, só, único, jazendo, cara de tênis novo. A parte branca
nem estava suja, não tinha rabiscos nem desenhos de caneta no tecido, nem
cadarço colorido. Procurei ao redor evidências do seu irmão ou de qualquer
coisa que justificasse ele estar ali... nada.
Então,
deixo aqui histórias que quero acreditar que aconteceram:
1
Uma
pessoa teve uma noite muito divertida, sentiu-se leve, fazia tempo que não
gargalhava, saiu com amigos, brincou, pulou, gritou. Fez o que quis, riu... sem
máscara, xingou... sem máscara. Durante a madrugada na rua, sentiu que o tênis
novo – e sempre gostou tanto de all star – estava incomodando, tava machucando.
Ele não pode estragar esse momento que estava vivendo, não é compatível com a
pessoa que o estava vestindo. Percebendo que o mundo é agora, desamarrou os
dois cadarços, deixou o tênis preso na ponta do pé e, sem falar para ninguém,
lançou o tênis com um chute tremendo para cima, um de cada vez. Um caiu no meio
da rua, o outro no quintal de alguma casa, onde não dava para pular o muro caso
quisesse recuperá-lo. Sensação de liberdade, mesmo com o chão gelado. Não tinha
problema, o álcool esquenta. Desnó. A catarse representada em um all star
amarelo.
2
Uma
mãe, uma vó e 3 filhos num Ford K baratinha, todos apertados. Mãe dirigindo,
avó no banco da frente. As 2 filhas pré-adolescentes de 11 e 14 anos e a criança
de 6 anos no banco de trás. Depois de muito tempo e com a mancada do pai que
desmarcou a viagem com suas crias pela 3ª vez, a mãe decidiu de última hora que
seus filhos vão viajar sim. Juntou um pouquinho que tinha com o dinheiro que
recebeu do imposto de renda, alugou um airbnb. No fundo, essa mãe ainda
idealiza a família unida, com todos juntos e felizes, mas deixa essa ideia num
coração bem pequeninho, escondido, que fica do lado do coração do sangue. Sabe
que esse último filho foi quando se deixou cair no conto do canalha mais uma vez.
Todos
queriam ir para praia, e daqui de Barbacena provavelmente estavam indo para Guarapari.
Fico impressionado que, para os mineiros, quase 8 horas de viagem nem é tão
longe assim. As filhas com olhos brilhando quando a mãe contou que iam para
praia, logo depois de estarem vermelhos com a notícia que o pai cancelou o
passeio das férias mais uma vez. Confusão rapidez com arrumação pega os
remédios da vó vê se desligou o gás não esquece seus biquinis tenho que
abastecer o carro onde deixei meu cartão vai dar tudo certo, se não der a gente
vai fazer dar. A menina de 14 anos estava toda orgulhosa porque com seus
últimos salários com os bicos de tia que cuida das crianças nos brinquedos
infláveis e como garçonete em casamento, conseguir por cílios, comprar seu
celular com uma capinha fofa e seu all star amarelo igual da Billie Eillish,
sua cantora favorita.
Durante
a saída do carro, nas primeiras ruas, sentiu tudo e todos socados no carro,
pensou que tinha até pouco espaço pra respirar. Bolsa do bebê na parte de trás
do banco, junto com travesseiros, bolsa térmica e seu all star. Estava com seu
celular na mão. Estava no silencioso. Recebeu uma mensagem do pai, não quis falar
para ninguém. Dizia que estava bravo que como tinha que pagar pensão não tinha
dinheiro para viajar. Guardou para si. Com o remelexo do carro, seu irmão
pulando, a avó pedindo para baixar o som, a irmã doida pra mexer no celular da
mais velha, um dos all star caiu no seu colo. Olhou para ele, sentiu raiva.
Pensou que talvez se tivesse dado o dinheiro para seu pai ao invés de comprar o
tênis, ele estaria ali. Talvez pudessem ser uma família “normal”. Engoliu o
choro para a alma, abriu o vidro e o jogou pela janela.




