Velhas histórias

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

VÃO COBRAR PELO QUÊ AGORA?

 


Um dia desses, desses dias muito normais da vida, estava indo com a Pri para a academia, paramos o carro na rua, quando estava saindo do carro, um homem de meia idade me chama: “ooo fortão, você pode ajudar a levantar meu pai que caiu aqui no banheiro de casa?” Tava de regatinha, todo todo, fui lá.

O cenário: um senhor bem gordo, cerca de uns 120kg, parecia ter engolido uma melancia, tava caído de bundinha no chão do banheiro e não conseguiu levantar. Não bateu a cabeça, não sangrou, não tinha desmaiado primeiro nem nada; simplesmente tomou todas para comemorar que era terça-feira, escorregou, caiu de bunda e não levantou mais.

O filho dele tava putasso porque desde que o pai se aposentou começou a comemorar todos os dias da semana... 1,2,3..9-12 latinhas de cerveja por dia. Tinham uma casa bonita, boa localização, por dentro a típica casa de veio... crochê em todos os lugares, mil enfeites, quadro do jesus e dos netos pela casa toda, além de aquecedores em todos os cômodos – segundo eles.

Na hora de tentar levantar o velho, ele não firmava, escorregava igual um saco de cocô, não tinha como segurar... o velho sofria porque o filho dele e eu ficávamos tentando levantá-lo de algum jeito, mas não tinha posição. Enquanto isso, uma vizinha velha e a dona da casa ficavam toda hora falando que o velho tinha que parar de beber. A Pri ficou na porta do lado de fora com uma outra vizinha velha que foi lá meter do ganso, essa vizinha ficava fazendo sinal com a mãozinha explicando que o velho só caiu pq ó! (sinal de tomar uma com o polegar).

Depois de várias tentativas frustradas, se invocamos, pegamos o velho igual no balança caixão e arrastamos ele até o quarto. O velho parecia um peixe-boi, não dava para levantar.

Tentamos de um lado, tentamos de outros, e mesmo com o velho escorado na cama não firmava o pé no chão de jeito nenhum. Daí propus a tática do lençol: deita o veio no chão, vira ele de lado, põe o lençol da cama em baixo, roda o veio e passa o lençol. Vamos tentar pescar esse veio. Rolar ele pra lá e pra cá deu certo, mas quem disse que a gente tinha força pra tirar ele do chão e jogar na cama? A nossa sorte que um outro filho do velho chegou, e esse tava seguindo os passos do veio porque parecia que ela já tinha engolido um melão, mas compensava porque era um cara altão. Nós três pegamos o veio, na raça, no jogo de time, não tinha mais posição, minha lombar já tinha ido pro saco, mas a honra ainda tava em jogo. Conseguimos levantar o veio e colocá-lo na cama todo torto. Depois foi uma segunda luta pra posicionar ele direito na cama. Quando ele ficou finalmente certinho, ele xingou o primeiro filho. Saímos de lá os três suados. Conversei um pouquinho com eles, falei para tranquilizar, pedi para observar, e, se depois ele reclamasse de alguma dor ou alguma coisa poderia levar ele no Regional e tals. Daí acabei falando que trabalho de médico lá, ficaram mais tranquilo e toda aquela novelinha que quem é médico tá acostumado.

De toda essa história uma coisa me incomodou profundamente, inclusive até me levou a fazer esse texto: na hora de sair da casa deles e se despedir, o filho que chegou depois me perguntou quanto ele precisava acertar comigo por ter ajudado a levantar o pai e ter dado as orientações sobre saúde.

Cara... ele queria me pagar... na hora eu falei, pelo amor de deus cara, a gente é gente, não precisa de nada não... que mundo é esse que você tem por dinheiro em tudo... a gente ainda é gente. Ele agradeceu, o outro irmão agradeceu, se despedimos e fui treinar.

Entendi a boa vontade dele. Todavia fiquei indignado como esse tentáculo de comercialização da vida atinge praticamente todos os aspectos. 

Da mesma forma que uma mãe não cobra pelo abraço de um filho, a situação posta de ajudar um semelhante, não passou na minha cabeça em nenhum instante a ideia de dinheiro – na verdade só passava: pqp minha lombar-. E não confundir, por gentileza, o ser médico é uma profissão, a conta de luz e do mercado não aceitam muito obrigado que deus te abençoe como forma de pagamento no boleto. Naquele momento era só um cara na rua que quebrou um galho para um desconhecido.

Gosto muito do trecho do filme clube da luta: você não é seu emprego. Nem quanto ganha ou quanto dinheiro tem no banco [...] nós não somos especiais.

E ao mesmo tempo acho que somos especiais como sociedade e não especiais como indivíduo. 


domingo, 3 de novembro de 2024

VOCÊ É UM MILHO OU UM RATO?

 

                        A Estudante - Anitta Malfatti , 1915 ou 1916 ou 1918

 

Dia desses, li um texto do Rubem Alves, escritor mineiro, chamado “a pipoca” – aliás, obrigado Nacif, por me apresentá-lo – texto leve, fluído, tem até aquele exagero quando o autor fala que conhece um cara que é cientista em milho... Afinal de contas, qual história é boa de contar se a gente não aumentar um ponto? ... No meio do texto, ele explora o conceito do piruá, de quem eu pego emprestado para esse texto.

Imagine que dentro de você está dormindo um eu, um ser fascinante com habilidades, desejos acobertados que não conseguem ser saciados, e pior, que fazemos questão de deixar eles lá, quietinhos, para não estragar aquilo que achamos o que somos hoje, aquilo que temos segurança, só por ser um diabo conhecido; aí temos o piruá. O milho que não estourou, toda a beleza, gostosura e potencial de pipoca, jogado fora nas cidades ou dado às galinhas no campo.

Penso como funciona o mecanismo para a gente segurar nossos impulsos, nossas vontades; e se o que eu desejo fazer for contra a lei? Por exemplo, sou doido para agredir um colega de trabalho que não trata bem as pessoas, um murrinho só, só pra descer aquele melado, mas eu não posso, porque senão serei punido com processos civis, administrativos e possivelmente até penal. Logo, piruá. Mas, e quando eu reprimo uma declaração de amor? Uma vontade de viver de um jeito, porém sou constantemente obrigado a trabalhar para viver de outro, senão por livre e espontânea vontade morro de fome.

Deixo de pipocar no amor, deixo de pipocar em algo que tenho mais afinidade, para quê? Para ter um conforto financeiro, no qual não passe necessidade com um mínimo para se viver, e se nada terrível acontecer, eu possa ajudar minha família, além de acumular algum patrimônio para que as próximas gerações da minha linhagem não tenham que passar as barras que eu passo? Então a gente NASCE, CRESCE, ACUMULA PATRIMÔNIO e MORRE? Não é possível que sejamos uma geração inteira e gigantesca de piruás, enquanto tem pouca pipoca por aí tomando conta de tudo.

Ah, mas eu não acredito nisso aí não. Ok, reflita sobre essa notícia: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/10/30/camara-emneda-para-taxar-grandes-fortunas.htm

---Título: Câmara rejeita taxar fortunas e termina regulação da reforma tributária… notícia de 30 de outubro de 2024, meu piruazinho.

O legal de pensar como a gente se torna piruá é que pode servir para mecanismos macros, como um banco que pode tomar sua casa, mas você – indivíduo – não pode ir tomar uma casa sem dono. Daí, coletivamente, a gente convenciona por você morar na rua mesmo. No relento. No frio. Na exposição.

Quanto para mecanismos micros. Lembra daquela vez que sua mãe e/ou pai não deixou você fazer/vestir/ir em determinada situação porque para eles não era adequado?... Ah, mas eles só estão tentando me proteger, tentando me educar... Até quanto isso não foi expectativa ou conveniência deles e para eles? E você, mais uma vez, piruá.

Quer um lado bom? De vez em quando, um ou outro piruá estoura. A maioria vai para o lixo... e é ali que o fogo e o óleo quente deveriam estar.


domingo, 13 de outubro de 2024

SÉRIO? CULPA POR DESCANSAR

 

Overwhelmed, Valeria Duca, 2021

Há algum tempo, venho trabalhando todos os dias, batidão, domingo a domingo, pegando alguns plantões noturnos para poder fechar a conta no final do mês. Chega hoje, sabadão, acordo 8h da manhã, mexo no celular, espera a Pri acordar, namoro, passeio com os dogs, faço o cafezin, mas não sinto a paz... sinto culpa, sinto culpa por não estar estudando, revendo erros, melhorar o conhecimento para por em prática no trabalho.

Por que?

Quando eu escolhi a profissão, eu sabia que é puxado, mas não deixa de ser uma profissão. Não é uma vocação, não foi um sonho de criança, mas foi escolhido pra provar, 1º para mim – que eu tenho inteligência suficiente para ser aceito numa instituição pública num concurso extremamente concorrido. Em 2º, para provar para os outros, pois eu já tinha falado que ia conseguir, só era questão de tempo – e sempre que eu penso nisso, vem a voz do meu pai falando que a gente é pobre e a única coisa que a gente tem é a nossa palavra. Consegui, provei. E agora?

Comecei a ganhar bem, e quando eu quis fazer melhorias na casa dos meus pais fui chamado de arrogante pelo meu próprio pai, hehe...eu só queria pintar umas paredes, reformar o gesso do teto do banheiro que estava todo escuro, mas pelo visto a forma que eu falei soou arrogante.

É engraçado como um pensamento vai puxando o outro e aí a gente entende a importância da terapia. Sinto sua falta, Letícia, você me ajudou num tempo difícil... eu ainda converso com você, só que sem pagar, imagino eu sentado na sua frente e você escutando e tentando disfarçar os bocejos hehe. Com você foi a primeira vez em 30 anos que eu tentei cuidar de mim, e não cuidar dos outros, inclusive no começo senti culpa por passar com você, como se fosse errado eu buscar ajuda – já vi em uns vídeos que quando na infância você tem responsabilidades com os irmãos/tem que trabalhar cedo é normal sentir culpa por querer se ajudar e não estar canalizando energia para ajudar alguém ao seu redor.

Nessa sexta, uma paciente morreu. Uma doninha de quase 80 anos com câncer de estômago recém diagnosticado, prognóstico reservado, não tinha mais 3 anos de vida. Ela estava gaspiando, e eu demorei para reconhecer o gasping. E isso, tem me feito enxergar como um impostor. Como alguém que escolheu a profissão para não repetir o erro dos pais de não ter uma profissão para poder trabalhar onde eu for, para mudar o status social. E, no meu irracional, eu não fetichizar, romantizar o que eu faço, tornar-me um profissional pior. Eu entendo que o DAS MAN fala que eu tenho que amar o que eu faço, colocando quase como uma servidão, eu entendo que estou num sistema que escraviza e me coloca numa condição de autodesenvolvimento e produção 24h/dia e quando paro para descansar, se descanso demais já vem um julgamento externo, e o pior de todos, o julgamento interno.

Eu fico puto porque sinto culpa de hoje ter tirado um cochilo a tarde depois do almoço, e não ter lido nada. Fico puto de querer ter mais força mental para abarcar mais conhecimento e ao mesmo tempo estar exausto e sentir culpa por estar exausto. Eu fico puto por não ser herdeiro, filho de político e por viver na porra de um sistema que escraviza, e tem gente que consegue ser convencida que essa merda funciona. Fico puto de reclamar, querer agir e estar exausto. Fico puto de demorar a reconhecer um gasping e uma vida pôde ter ido embora por minha inabilidade (+1 pessoa na minha corrente de cemitério).

Não sei se te coloquei como uma figura materna, mas sei que você me fez bem. Sinto sua falta. Tenho receio e não tenho dinheiro para tentar começar com outra pessoa. Fico puto.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

CADÊ O SILÊNCIO QUE MORAVA AQUI?

 

            Caminhante Sobre o Mar de Névoa, Caspar David Friedrich, 1818



Dia desses, larguei telas e sentei na varanda, numa cadeira de praia – companheira fiel da minha casa e das viagens – pra olhar a rua, o céu, e deixar a cabeça pensar, sem estímulos externos. Não coloquei música, não tinha propaganda de youtube, não tinha a olhadinha no instagram. Só a paradeira da rua, do céu sem nuvens.

Meu cachorro, ficou do meu lado, procurando os urubus com quem ele tanto briga, e eles nem dão bola. Uma hora ele cansou, deitou no meu colo, e ficamos lá olhando a vida parada, sem estímulo, só o barulho e a luz natural do dia.

Cheguei a presenciar dois irmãos brincando de subir e andar em um muro alto, ninguém caiu, ficaram muito orgulhosos pois passaram do medo, da provação e se sentiram incríveis. Vi um grupinho de crianças/pré-adolescente descendo uma rua onde quase não passam carros. No meio da descida, a menininha mais nova e o rapazote mais novo param e quase de imediato começaram a dançar... os outros companheiros continuaram descendo, nem se deram conta da bailada dos amigos.

Foi uma apreciação curta, deu por volta de uns 40 minutos. No começo, minha cabeça pensava nos problemas da vida, falta de dinheiro, se fiz as escolhas certas, se eu caso ou compro uma bicicleta, mas aí vai divagando, vou focando em uma casa, a mente vai ficando mais tranquila. Talvez isso seja um tipo de meditação.

Uma vez, eu li que devíamos ficar pelo menos 2h em silêncio por dia. Enquanto acordados. Dados esses estímulos constantes, não lembrei a última vez que fiquei 20min em silêncio acordado. Se estamos a segundos da evolução da selva para cidade, talvez a mente não tenha acompanhado a mesma velocidade do estímulo, e talvez, um dia, isso venha a cobrar seu preço de alguma forma. Até lá, a meditação talvez não seja uma má ideia.


domingo, 14 de julho de 2024

DESPRAZER, EU SOU O MUNDO

                       

                                                                     O Anjo Caído (L' Ange déchu), 1847, por Alexandre Cabanel


Na correria do dia a dia, a gente tem pequenos espaços das nossas horas na qual a gente consegue pensar. Geralmente ocorre quando não estamos dando atenção para alguém ou prum celular, uma TV. Grande parte da nossa atenção é dada para o trabalho, os tempinhos de folga ficam voltados pra telas. Penso que muita gente tem insônia por causa disso, o tempo que tem pra pensar só é conseguido a noite na hora que deita. Aí, ao invés de dormir, pensa.

Faça o experimento de tirar 15 min no meio do seu dia pra pensar. Veja se quase sempre não são os mesmos pensamentos que te acompanham no travesseiro, você querendo dormir e sua cabeça não deixa.

Ultimamente, num desses lapsos de tempo pra pensar, tem me recorrido um episódio que ocorreu comigo no colégio. Um olhar.

Explico:

A época foi do ensino médio, tava fazendo o segundo ano, era de uma turma em que a gente queria jogar bola, ficar com meninas e ir pra porto seguro no terceirão. Quase ninguém falava de vestibular, quase ninguém falava de política, éramos alunos médios com cabeça média.

No grande interclasses, campeonatinho de futebol organizado por nós mesmos, jogávamos as partidas na quadra dos bombeiros, próximo ao colégio. Num desses jogos, um cara do primeiro ano saiu correndo do banco de reservas para agredir o Alberto (meu amigo), porque o Alberto tinha feito uma falta no jogador do time dele. Eu que tava na reserva do meu time, sai correndo pra defender o Alberto, e sentei um murro na cara do cara antes de ele encostar no meu amigo. O cara caiu, quebrou o nariz e o tempo fechou. Os bombeiros ficaram putos, os outros jogos do dia foram adiados.

Como em qualquer colégio, essa história repercutiu, ganhou proporções, parecia que o cara que eu dei o socão conhecia uns cara e aí o tempo ia fechar de novo e tals... Lembro que essa história repercutiu em várias esferas da minha vida na época, e como eu era adolescente, a intensidade das emoções eram o 100x maior... Querida adolescência, quando tudo é muito muito!

Pra tentar sair dessa, pensando em colégio e amigos, chegou na minha orelha que o cara do primeiro ano queria me dar um soco no rosto, e assim a gente evitava uma briga de um monte de gente contra um monte de gente. Deixei. Isso correu alguns dias depois da primeira briga. Meus grandes amigos não estavam comigo no ato. Não os culpo, escolhi um horário que tava a maioria em aula. Na minha cabeça da época fazia sentido deixar levar um soco no rosto de que arranjar uma treta com um monte de gente, inclusive envolvendo o resto dos meus amigos. Não queria. Só queria que a história acabasse. Já tinha dado problema na minha casa com meus pais – aí nessa esfera fica em outro texto pra Letícia – os ânimos já estavam abalados.

Tinha uns colegas meus que estavam de aula vaga comigo, foram juntos ver eu levar o soco. Ficamos bem próximo da porta do colégio. A guardinha da porta tava nem aí, afinal a gente tava fora do colégio. Mesmo eu tentando dialogar com o japonês gordinho que eu tinha dado o soco, ele manteve o ato. (Não pense em japonês gordinho fofinho nerdola, pense em japonês gordinho yakuza). Eu cheguei a perguntar se ele ia mesmo querer fazer isso, e ele respondeu que logico que sim porque eu tinha quebrado o nariz dele. Depois dessa resposta eu fiquei marcado pelo olhar. Foi um olhar que seu eu fechar os meus olhos eu ainda consigo ver. Um olhar de ódio, de maldade. Eu entendo estar de cabeça quente e sair na mão. Eu não entendo dias depois, após a poeira ter baixado, aquele olhar. De a pessoa em plena consciência saber que vai agredir alguém e tá tudo bem. Ali eu entendi que a maldade pode fazer parte de alguém, ali eu entendi que o mundo é mau, ali minha inocência morreu.

TUFF, levei o primeiro, no reflexo esquivei um pouco e pegou na bochecha. O japonês não ficou satisfeito, alegou varias vezes que eu tinha quebrado o nariz dele. Deixei dar um segundo soco. TUFF de novo. Pegou um pouquinho acima do meu nariz, simulei uma dor, perguntei se estamos quites, ele falou que sim. Não sei como esse cara errou meu nariz, afinal sou mó narigudão.

Desde esse dia, minha estrutura social mudou. A relação com meus amigos, a relação com meus pais por terem me deixado na mão, o que eu pensava de mim mesmo.

Hoje eu escrevo aqui, um fato que aconteceu em 2011, e eu ainda vejo o olhar. Talvez eu escrevo aqui porque alguma coisa ainda não tá fechada, alguma coisa não tá resolvida. Pode ser que novas situações de medo, insegurança ativem essa memória.

A única coisa que eu fico puto é que nos meus segundos de paz, no momento que era pra eu relaxar, tô lá eu revivendo a memória, reproduzindo falas, sentindo o coração bater mais forte, sentindo a morte do Rodrigo que gostava do mundo e das pessoas, do mundo ideal. E o olhar tá ali, na minha frente, fazendo companhia, esperando eu agir de outra forma, esperando eu tomar uma ação pra não se ferir. Desculpa, eu não levantei meus braços, eu deixei me bater. De novo.


terça-feira, 2 de julho de 2024

MESTRE NA ARTE DE SOFRER POR ANTECEDÊNCIA

 

                                   "Self-Made man", Bobbie Carlyle


De ontem para hoje, fiz mais um plantão noturno no Regional. O bom e velho das 19h-7h. Esse período da madrugada é um momento incrível, vem desde a moça que bateu o dedinho da mão esquerda há 6 dias querendo atestado porque não consegue trabalhar – mas consegue mexer no celular e arrumar os cabelos - ao cara que tem HIV, parou de usar TARV, bateu a cabeça e tem fibrilação atrial.

Dada essa certeza da incerteza, da apresentação da minha possível ignorância para o que vai se apresentar, eu sofro. Chego a sofrer 2-3 dias antes do plantão. Durmo mal, aumento o número de idas ao banheiro, não aproveito o presente.

 E se, aparecer uma crise convulsiva que eu não consiga reverter? E se, eu não perceber algum dado importante e comer bola, e acabar lascando a saúde dessa pessoa que tá na minha frente? E se, o que eu estudo ou o que eu sou não é o bastante para atuar na área da saúde?

Essas ruminações ficam como um colega chato de trabalho, você só sabe que talvez vai se livrar se você as encarar, for pra cima, arrancar logo o band-aid. Ou quando o relógio marca 7h.

No fundo, eu sei que posso discutir casos, pedir opiniões. Eu entendi que medicina é uma arte coletiva. Contudo, quando você quer construir um nome, e constantemente você é estimulado a ser o “self-made man” acabam gerando conflitos internos nos divertidamentes.

O pior momento de sofrência pra mim, é aquele quando não está tão cedo para ir pro plantão, mas também ainda vai demorar um pouquinho pra se livrar logo da responsabilidade. Vejo minha esposa em casa, quentinha, de pijama, embaixo do cobertor, meus cachorros cobertos, já passeados, e eu me trocando para encarar frio, fome e a minha grande ignorância.

domingo, 16 de junho de 2024

QUEM É VOCÊ?

 


Uma vez me perguntaram o que faz você ser você. Qual a essência de uma pessoa? Até hoje não pensei e não achei uma resposta satisfatória. Gosto muito do mito de que a alma pesa 21 gramas. Já que o corpo e a mente são a armadura e o centro de comando, quer dizer que o que nós somos cabe em 21 gramas.

E por que não caberia? Toda sua informação genética está dentro de cromossomos, que estão dentro do núcleo, que está dentro de uma célula! Ou ainda, todo o universo observável tem a maior probabilidade de ter nascido de um único ponto!

Outra máxima que gosto de pensar e dizer é: sou um ser humano e como tal sou contraditório! Nela, não me eximo das consequências de minhas escolhas, mas deixa leve o fato de que mudar de opinião, de gosto ou simplesmente, deixar de estar num estado calmo e explodir, faz parte do ser “ser humano”. Não sei a razão, mas nunca vi alguém fixo, alguém eterno, portanto, pela negação ela faz sentido. Se tivesse um exemplinho qualquer que quebrasse a ideia dessa frase, certamente eu repensaria alguns valores.

Talvez misturar ciências exatas com ciências sociais dê um tom de amarelo gordinho.



sábado, 8 de junho de 2024

MORRE E DESMORRE


O Auto da Compadecida (filme), 2000, dirigido por Guel Arraes

 

Muitas vezes escutamos histórias de alguém que conhece alguém, que conhece alguém que fez uma coisa fantástica. Até você ver com seu olho, escutar com seu ouvido e farejar com seu nariz, toda essa aventura contada fica no campo da imaginação e num bom papo de bar.

Sala vermelha, senhorzinho tacou o terror no plantão noturno. Primeiramente, ele estava alocado no setor não crítico com proposta de alta no dia seguinte porque sua condição de saúde beirava melhor que a nossa. A noite, em sua última posa na enfermaria, o homem para – pra quem não é da saúde: o coração do homem simplesmente parou de bater – será que infartou? Será algum mal súbito? Ressuscita esse homem.

Pelos relatos, tentaram fazer a massagem cardíaca cerca de 6-7 vezes, mas aparentemente o homem parava de novo poucos segundos após voltar. Foi optado por deixar ele ir, só que esqueceram de combinar com esse tiozinho, porque ele voltava espontaneamente sem ninguém pôr a mão. Ele passava de pálido e imóvel, para corado, pulsudo e inclusive abria os olhos. E do mesmo jeito que voltava, ia. Mil eletros rodados, marca-passo e o diabo, e homem continuava morrendo e desmorrendo.

Chegaram a chamar os cabeças brancas, os mais novos, e ninguém sabia dizer o que se sucedia ali. Pensaram até na tal da síndrome de Lázaro, mas pela definição não encaixa bem nesse caso. E assim foi a manhã e a tarde do dia.

 Lá pra 16-17h, recebeu a visita de um neto e de uma filha. Só após a filha ir embora, o tiozinho decidiu que já tava bom de ver a luz e fugir da luz. Foi.

            Dessa vivência fiquei pensando em 3 pontos:

01)  Imagina as meninas da enfermagem indo arrumar o corpo e do nada o cara volta. Pensa o susto que elas devem ter levado.

02)  Já tinha escutado história de que muitas vezes a pessoa espera ver um ente querido para morrer de verdade, mas agora eu presenciei isso.

03)   Será que se ele conseguisse se comunicar, ele poderia dar alguma pista se tem ou não algo do lado de lá?


domingo, 26 de maio de 2024

EU MATEI UM MORTO

 

                                                   Morte e Vida , Gustav Klimt, 1916, Viena


Nessas últimas semanas, tenho rodado pela crítica – famosa sala vermelha - e apesar de ter desafios de técnica médica de aprendizagem, o que mais tem deixado à flor da pele têm sido os dilemas éticos e morais.

Quando você se depara diante de uma situação de alguém com idade avançada e saúde frágil é até relativamente mais fácil de se pensar em final de vida, de se pensar em como conduzir o caso e de como conversar com a família. Porém, quando chegam os meio termos, não tão velho, mas nem tão novo, alguém sem doença terminal ou estágio avançado de algum insulto agudo, e, você e confrontado a conversar com a família sobre cuidados paliativos, aí sim a razão abala.

Nessa semana, vi uma senhora que até um mês estava andando e falante, e de repente, na nossa maca, estava com fácies de morte – boca aberta, olhos semicerrados, sem se mexer, semiconsciente. Tem 7 filhas e 3 filhos. As filhas dão mais trabalho que a própria paciente.

Nesse mesmo tempo, um homem de cerca de 45 anos, após acidente de moto x caminhão, evoluiu para morte encefálica. Foi uma guerra conseguir passar por todos os protocolos, e no dia que tudo ocorreu burocraticamente correto, aos 45 do segundo tempo, a família negou qualquer possibilidade de doação de órgãos. Estava no segundo dia com o paciente. Não tinha realizado sua admissão, não tinha realizado nenhum teste de morte encefálica, não tinha meu carimbo vinculado ao homem. Todavia, como ficou comigo sua evolução do dia do último exame (uma arteriografia realizada externamente) e da negação da família para a doação de órgãos, eu tive que ser a pessoa a dar a ordem de desligar os aparelhos, as bombas e o ventilador. Eu matei a vida artificial de um morto.

Durante o almoço, antes de dar essa ordem, tive um episódio de ansiedade- famosa vontade de chorar, aperto no peito e respiração rápida; foi breve; mas foi. Esse dia me atolaram de burocracia, relatório para o IML, além de pendência de outros pacientes, da demanda da família da doninha meio termo e da demanda da doninha em fase terminal – parece que eles combinarem de vir para crítica juntos- então, no único momento que eu pude pensar, que foi esse no meu almoço, eu me senti gente, senti angústia, senti até certo grau de injustiça, pois o problema do homem foi dado para ser resolvido, contudo ele foi conduzido todo esse tempo por outras pessoas que estavam lá. Na hora de desligar as coisas foi muito mais sem emoção que imaginei. Foi uma simples ordem: “vamos desligar os aparelhos e ajeitar o corpo do fulano que vai para o IML”. Fim. Para as enfermeiras então, tiravam os acessos e continuavam conversando da vida comum de casa. Para mim, uma novidade, para elas, mais um acesso que o médico mandou tirar.

sábado, 11 de maio de 2024

LETÍCIA

   

The Laughing Fool, 1500, Jacob Cornelisz van Oostsanen


     

Hoje durante uma corrida eu pensei em começar esse texto de diversas formas. A que eu mais gostei foi: já que eu não posso pagar psicóloga vou escrever aqui pra ver se ajusta alguma coisa na cachola.

            Ontem tive um conflito comigo mesmo: até quanto tenho que aguentar uma sensação de preso pra manter algo bom? 

            Desde a época que eu me entendi por gente, eu me sinto preso e em dívida.

 

    Primeiro, por ser irmão mais velho já era dito - você é o mais velho, você tem que olhar seus irmãos! 

Como eu ganhava casa, comida e roupa, na minha cabeça essa era minha parte de contribuir para o "algo bom", de fazer o certo para as coisas de casa irem bem. Eu estudava, tentava de tudo para não errar na frente do meu irmão - e acredite ou não, isso foi uma das coisas que mais pesou pra mim. Não sou muito bom de lembrar uma história de infância - só as mais marcantes - porém as sensações desse período estão no âmago. O fato de eu sair com meu irmão de chaveiro me limitou muito a errar! Eu tava explodindo pra descobrir o mundo, mas eu tinha que "ser o exemplo".

    

             Logo quando eu fui ficando mais rapaz, 15,16 anos, eu mudei de colégio. Não tinha mais familiar na minha cola. O portão era livre, não era o bairro onde eu morava. Ali eu entendi que eu poderia tentar ver quem eu sou, limites, deveres, cagadas. Foi ali que eu conheci o álcool, sexo, maconha.

Fui expulso do museu do Ipiranga porque tava com mais 3 amigos bebendo Natasha com Sprite, lá nas árvores, 10h da manhã. Foi nessa época que eu comprei minha primeira playboy - da Cacau do BBB (muito boa revista, aliás). Foi nessa época que tive vários rolinhos, que eu consegui ir a um cinema com pessoas que gostam da sua companhia mesmo você falando merda.

Todavia foi nessa época que tinha que trabalhar na loja dos meus pais. Um caixa/ajudante geral/faxineiro... o engraçado que eu escutava que essa loja tava sendo preparada para mim. Não ganhava salário. E nem fui consultado se eu queria continuar tocando a loja, e como eu me sentia em dívida, não conseguia falar que não, não conseguia falar nada!

             Hoje eu dou risada que de quem acha que trabalhar com o pai é boiada. Meu amigo, ele fala que você é dono, você não recebe, você entra na hora que abre e sai na hora que fecha, isso se não tiver mais coisa para fazer, e ah... almoçou, volta pra trabalhar.

             Não entenda essa trajetória como se fosse um suplício, com certeza teve momentos bons, histórias legais, mas quando eu paro para lembrar, a sensação de preso e dívida sempre vêm primeiro.

            Penso que um dos meus recursos pra eu poder tentar respirar um ar com meu pulmão foi a mentira. A deliciosa mentira. Sempre do lado do meu ego, da minha certeza, foi ela que me ajudou a proporcionar momentos de vida. Sabe aquele momento de adrenalina que vc escapou por um triz de algo ruim e gera aquela sensação de " uuouu! como é legal estar vivo!". Pra muitas dessas minhas experiências eu tive que usá-la, caso contrário eu estaria trabalhando ou cuidando de alguém.

Um dia vou escrever sobre como a mentira e vício nessa sensação afetou/afeta meus relacionamentos, minha interação com os outros. A única certeza que eu tenho é que um dia vou morrer e todos os dias a sensação de preso toma café comigo às 7h, 14h e meia-noite.


sábado, 20 de abril de 2024

IAGO

     



    Depois de 04 finais de semana sem folga, agora deu um espaço para reflexão aqui. Com a maioria dos médicos que conversei não me lembro de 01 que falou "como era bom meu R1".  Eu fico num mix de "hum... então não é tão legal assim, mas ao mesmo tempo é", afinal a briga para entrar numa residência - que aliás tem ficado cada vez mais difícil esse acesso- foi grande, e agora, eu quero a recompensa.

     A curva de aprendizado sobe para as alturas e junto com ela, o trabalho. Como pode chegar num serviço às 6:30 da manhã, ser 20h da noite e você não parar; você mal almoça e já volta para terminar suas coisas. Mas as coisas nunca terminam.
    Nesses quase dois meses de trabalho, vi hepatopatas, sd compartimental com fasciotomia, diversos canceres, mulher que foi no hospital para sair de casa porque o marido estava perturbando a cabeça, dengue atrás de dengue, e até o famoso caso do rexona que entrou no fiofó "sem querer". 

    Deixo aqui uma passagem de um paciente do hospital (mudando totalmente o tom do texto):


    Um rapazote entre 17-20 anos, alto, magrinho, com tatuagem no pescoço, paciente da ortopedia, ficava passando de cadeira de rodas no corredor onde se encontram os computadores da clínica. Ele passava de cadeira de rodas muito acelerado, subia e descia esse corredor o dia inteiro e sempre muito rápido. De vez em quando parava lá para falar alguma coisa comigo e com meus colegas. A gente chamava ele de relâmpago Marquinhos, porque o bicho só andava acelerado. 

    Um dia ele parou e mostrou um vídeo dele empinando uma moto. Nos dias seguintes, relâmpago parava lá para reclamar que ficava muito tempo ocioso, pois não saia sua cirurgia. Reclamava que seus colegas de quarto cagavam no chão. Fazia reflexões como "IAGO" ao contrário é "O GAI". E assim ia indo. Um dia estava andando rápido de muletas, tropeçou e bateu a boca. Quebrou o dente da frente. O que a gente ria desse menino, quando ele chegou lá dando aquele sorriso sem o incisivo, foi bom demais. Mais alguns dias e nada de sair a cirurgia. Ele começou a andar de cadeira de rodas vestindo capacete de moto. Essa rapaz conseguiu montar uma gangue dos ociosos junto com outros pacientes da ortopedia e da psiquiatria, ficavam jogando UNO e circulando pelo hospital. E, um dia, sem mais nem menos, notamos que ele não aparecia mais. Descobrimos que conseguiu sua operação, e praticamente na manhã seguinte teve alta. Seus capangas da gangue do UNO, tentaram se reunir algumas vezes, mas como o líder não estava mais, a trupe acabou se desfazendo.


domingo, 3 de março de 2024

VOCÊ VIU UM CAVALO PRETO?

 

Olá pessoa amável da internet

 

Finalmente saiu! A tão batalhada residência, saiu. Pra quem não é da área, quando a gente faz curso de medicina, estuda-se 04 anos de ciclo básico e depois mais 02 anos de internato. Acabado os 06 anos, parabéns, vc pode atuar como médico. Infelizmente, só vem o diploma, a mala com 01 milhão de dólares não vem junto, igual muitos acham.

Mas vc é médico de que? Ah, tia, eu sou generalista. Então vc cuida do que? Ah, um pouquinho de tudo. Hmm. Olha meus exame aí então.

Meio que pra vc virar gente na medicina, vc tem que fazer a famosa residência, ou seja, a tal da especialização. E, rapaz, essa residência virou um segundo vestibular. Entrou cursinho, fazer provas antigas, tomar bomba com as primeiras provas que vc achou que foi muito bem.... Contudo depois desses 03 anos, entrei na residência em Barbacena – MG.

Até hoje, só tive meu primeiro dia, vai lá um resumão dele:

-- gente, vcs colam 7:30 que a gente vai receber vcs com um café.

-- noite anterior: gente, o chefão falou que não, e é pra 7h já tá trabalhando.

-- Começo na UTI do hospital, 10 leitos, galera crítica, tudo novo.

-- Parte boa: os mineiros são tudo gente boa, superacolhedores.

-- Parte ruim: trabalhei 03 anos no postinho, a mão treme para pegar um paciente crítico.

-- Depois de colar num R3 da intensiva e pegar uma R2 gente boa e um plantonista bonzinho, a tarde teve a recepção do chefão.

            -- Não teve café, não teve bolo; somente um senhor de bigode branco falando pra dentro: boas-vindas.

-- O serviço foi muito legal, tem muito procedimento, e, já estou a par de algumas fofoquinhas.

A noite na saída da UTI, estava de moto, peguei uma chuva que parecia que tinha entrado na piscina.

E lá pras 9-10h da noite, juntaram alguns residentes para um rolê num bar jeitoso daqui.

Primeira impressão: mundo novo, vida nova.

Principal preocupação: acabar com as partes burocráticas de apartamento de São Carlos e Barbacena, e, ter logo o CRM de Minas para assim, conseguir dar enfoque nessa vida nova.